O que está em jogo no julgamento do Caso Mariana em Londres
Numa das maiores ações coletivas da história, vítimas do rompimento de barragem em MG pedem reparação no Reino Unido
Nove anos depois do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, começará nesta segunda-feira, 21, um novo capítulo daquela que é considerada uma das maiores tragédias ambientais da história recente do Brasil. Terá início no Reino Unido um julgamento que busca reparação para brasileiros afetados pelos rejeitos de minério que vazaram da barragem.
Previsto para durar até março de 2025, o julgamento tem como objetivo responsabilizar a mineradora anglo-australiana BHP Billiton pelo ocorrido. Ao lado da brasileira Vale, a BHP é acionista igualitária da Samarco, a empresa que controlava a barragem quando o rompimento aconteceu, em 5 de novembro de 2015.
O caso, que tramita na justiça britânica desde 2018, é movido por 620 mil pessoas, 46 municípios e 1,5 mil empresas afetadas no Brasil, que pedem uma indenização de R$ 230 bilhões, numa das maiores ações coletivas da história. Entre os requerentes estão também instituições religiosas, comunidades indígenas e quilombolas.
O julgamento ocorre em paralelo a uma tentativa de repactuação de um acordo de reparação firmado entre as empresas e o governo brasileiro, bem como em meio a uma polêmica sobre o pagamento de honorários advocatícios por parte das prefeituras das cidades brasileiras integrantes na ação no Reino Unido.
O que está em jogo
De acordo com o escritório de advocacia Pogust Goodhead, que representa as vítimas no Reino Unido, essa seria a maior ação coletiva da história da justiça britânica e uma das maiores em causas ambientais do mundo, pelo número de requerentes e valor de indenização.
Em jogo também está a possibilidade de estabelecer um precedente global para responsabilizar grandes corporações por danos ambientais causados em outros países. Isso pode impactar na reparação de outros desastres ambientais ocorridos no Brasil e cujos casos também estão sendo defendidos internacionalmente pelo mesmo escritório.
O Pogust Goodhead atua nos casos do rompimento da barragem em Brumadinho, Minas Gerais, no afundamentos de bairros em Maceió, Alagoas, numa ação contra a Vale pelo caso Mariana na Holanda, além de ações relacionadas à poluição por resíduos tóxicos em Barcarena e Abaetetuba, e no afundamento do navio Haidar, ambos estes dois últimos no Pará.
“[O caso Mariana] serve como um lembrete aos acionistas de que, embora a globalização tenha sido benéfica para os negócios, ela também ampliou a capacidade de assumir responsabilidade internacionalmente”, afirma Ana Carolina Salomão, sócia e diretora de investimentos do Pogust Goodhead.
Por que o caso está sendo julgado no Reino Unido
O rompimento da barragem de Fundão aconteceu no dia 5 de novembro de 2015, liberando 44,5 milhões de metros cúbicos de lama tóxica no meio ambiente, o equivalente a 13 piscinas olímpicas.
O dano se estendeu pelos dias subsequentes, quando outros 13 milhões de metros cúbicos continuaram escoando. Ao todo, os rejeitos percorreram 675 quilômetros, atingindo o Rio Doce, desaguando no oceano Atlântico e chegando ao Espírito Santo e sul da Bahia. Dezenove pessoas morreram.
Em 2016, Samarco, Vale e BHP assinaram um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) com a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e criaram a Fundação Renova, para reparar os danos causados pelo rompimento.
A entidade, entretanto, já foi questionada judicialmente mais de uma vez, pela ineficiência em realizar essa reparação, com atraso na entrega da reconstrução de comunidades destruídas e no pagamento de indenizações. Em 2021, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) chegou a pedir a extinção da Renova.
Em 2017, um advogado brasileiro que representava cerca de 6 mil pescadores levou o caso ao advogado galês Tom Goodhead. Como a BHP tinha ações na Bolsa de Valores britânica, eles decidiram acionar a justiça do Reino Unido. “O que aconteceu foi uma falha sistêmica. A principal razão pela qual isso começou foi um fracasso por parte da BHP, da Vale, do governo brasileiro e das instituições de justiça em garantir uma reparação justa e adequada às vítimas”, afirma Goodhead.
A ação judicial no Reino Unido começou em 2018, foi inicialmente rejeitada, mas em julho de 2022 a corte inglesa aceitou julgar o caso. “A BHP nos enviou uma carta na semana passada afirmando que 200 mil pessoas que estão na causa receberam reparação, mas a maioria recebeu apenas algumas centenas de libras”, acrescenta Goodhead.
Em nota, a BHP afirmou que o rompimento da barragem de Fundão foi uma tragédia e que “está trabalhando coletivamente com as autoridades brasileiras e outros para buscar soluções para finalizar o processo completo de compensação e reabilitação que manteria os fundos no Brasil para o povo brasileiro e o meio ambiente afetado, incluindo as comunidades tradicionais e indígenas impactadas”.
A empresa afirmou ainda que a ação no Reino Unido “duplica e prejudica os esforços já em andamento no Brasil”. Por fim, a BHP ressaltou que não está envolvida em nenhuma negociação de acordos no Reino Unido, e que permanecerá negando as reivindicações alegadas no julgamento.
A Fundação Renova diz que já destinou R$ 38 bilhões em auxílio financeiro emergencial, indenizações, reparação do meio ambiente e infraestruturas. “Desse valor total, R$ 14,86 bilhões foram pagos em indenizações e R$ 2,96 bilhões em Auxílios Financeiros Emergenciais, totalizando R$ 17,82 bilhões em 446,5 mil acordos”, afirma a entidade em nota. A Fundação também afirma que 86,89% dos imóveis em Novo Bento Rodrigues e Paracatu estão construídos, e 211 foram entregues às famílias. Os dados são de agosto deste ano.
Atualmente, o governo brasileiro negocia um novo acordo de indenização, que prevê R$ 100 bilhões em reparação, dos quais R$ 30 bilhões decorrentes de obrigações a serem implementadas pelas mineradoras.
Para o escritório que defende as vítimas, um novo acordo não influenciará o julgamento no Reino Unido. “Há um ceticismo por parte dos nossos clientes. Mesmo que esse acordo seja estabelecido, ainda haverá reclamantes que defendemos e não são reconhecidos como impactados”, acrescenta Goodhead.
Como funcionará o julgamento
O julgamento começa na segunda-feira, mas se estenderá até março de 2025. Estão previstas 12 semanas de atividades, divididas entre depoimentos, apresentação de evidências, testemunho de representantes e ex-funcionários da BHP, exposição dos advogados e de especialistas.
A primeira semana começará com as declarações iniciais de ambas as partes. A partir do dia 28 de outubro, haverá o interrogatório de testemunhas da BHP. Nessa fase, espera-se que seja esclarecido qual o nível de controle que a mineradora anglo-australiana tinha sobre a barragem, seus processos de segurança e ação após o ocorrido.
Em meados de novembro, o tribunal ouvirá especialistas em direito civil, societário e ambiental. Espera-se que seja discutida nessa fase a legitimidade dos municípios brasileiros para entrar com uma ação de reparação fora do país. Também haverá mais um depoimento de um ex-diretor financeiro da mineradora. Especialistas em questões geotécnicas também serão ouvidos, antes da fase final, que deve ocorrer entre os dias 24 de fevereiro e 5 de março.
A defesa das vítimas alega que a BHP tem participação no Conselho de Administração e nos comitês da Samarco, além de possuir propriedade e controle das atividades desta. Os requerentes se baseiam em provas factuais de que a BHP agiu de forma negligente. “Entre outras coisas, nas auditorias e na gestão de riscos da Samarco, na aprovação do uso da barragem pela Vale e na continuidade do aumento da produção da Samarco sem garantir que a barragem fosse segura”, afirma Tom Ainsworth, sócio do Pogust Goodhead.
Espera-se que a sentença só seja dada em meados de 2025. Mas isso não significa que a indenização será paga imediatamente. Se a justiça britânica reconhecer a responsabilidade da BHP, um novo julgamento ocorrerá em outubro de 2026 para determinar o valor do pagamento. Em nota, a BHP afirma que “se o caso progredir, não esperamos que nenhum pagamento de indenização seja concedido até pelo menos 2028-2030”.
Além dessa ação no Reino Unido, há outra em curso na Holanda, cujos réus são a Vale e uma subsidiária holandesa da Samarco. A BHP não será julgada nesta ação. A Vale chegou a ser incluída no caso britânico, mas fez um acordo para ser retirada do julgamento. Em caso de condenação, entretanto, dividirá o pagamento com a BHP.
Quem são os brasileiros que pedem justiça no Reino Unido
Inicialmente, o escritório que representa as vítimas no Reino Unido estimava que seriam 700 mil demandantes na ação, mas após revisão de nomes duplicados o número final de vítimas brasileiras que podem ser indenizadas após o julgamento na justiça britânica é de 620 mil.
Entre elas estão 23 mil indígenas dos povos Krenak, Tupiniquim, Pataxó e Guarani; moradores do distrito de Bento Rodrigues, empresas, instituições religiosas e prefeituras. Os indivíduos alegam danos físicos e psicológicos, aumento do custo de vida, perda ou redução de renda, além de interrupção de serviços básicos e danos morais. As empresas alegam ainda perdas de oportunidade de negócios e fechamento.
Os povos tradicionais afirmam que tiveram suas tradições alteradas, como os Krenak, que deixaram de realizar rituais no Rio Doce, considerado sagrado para eles. Enquanto os municípios dizem que tiveram danos à propriedade, ambientais, reputacionais e morais coletivos.
Na última segunda-feira, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu os municípios de pagar os municípios de pagar os honorários advocatícios relativos a ações tramitando no exterior. A liminar foi concedida após o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), entidade que representa as maiores mineradoras do país, contestar a possibilidade de as empresas serem acionadas fora do Brasil.
O ministro alegou que as taxas são consideradas elevadas em relação ao valor a ser obtido pelo poder público. De acordo com o Pogust Goodhead, são cobrados 20% do valor a ser recebido pelos municípios em honorário. “Esse caso está em julgamento há seis anos, acreditamos que gastamos mais de 250 milhões de libras de dinheiro de financiadores de litígio. Além disso, é um litígio de alto risco”, diz Goodhead. Segundo ele, não há cobrança de taxa para as comunidades tradicionais, para empresas varia de 20 a 30% (dependendo do tipo de organização) e para os indivíduos é cobrado 30% do valor a ser recebido.